terça-feira, maio 01, 2018

Pronome possessivo.



Meu Heitor,

Ouso começar a carta de hoje te chamando como sempre te chamei. Várias vezes comentei o quão eu achava magnífica a força embutida em um pronome possessivo, lembra? Por isso, Heitor, começo assim, ainda que a realidade grite o contrário. 

Faz tempo que não choro, Heitor. Mais de uma semana, sem derramar uma lágrima, acho. Não sei se é a dinâmica da vida trazendo as coisas pra os seus devidos lugares ou se é meu cinismo disfarçado que adora varrer meu lixo sentimental pra debaixo do tapete da minha existência. Se a segunda opção estiver correta, sinto dizer, estou fudida. Mas, de fato, desde que optei por fingir que você já não  existe, fiquei mais forte. Ou seria menos fraca? Não sei bem. Às vezes termino o dia exausta, porque criar um defunto assim, tão de repente, sobretudo quando se respirava tanta vida, sem velório e sem caixão, demanda um gasto energético absurdo. O fato é que descobri que o nunca mais da morte é mais fácil de ser deglutido do que o nunca mais da vida. O nunca mais da morte é objetivo, definitivo e involuntário; ninguém escolhe morrer pra deixar o outro, ou pelo menos esse não era o nosso caso. Mas o nunca mais da vida vem permeado de subjetividade e rejeição, e isso dói mais do que o próprio nunca mais. Então, optei por te matar para poder seguir com o mínimo de paz até que o sentimento que ainda tenho por ti se esvaia por completo e as lembranças parem de me sufocar. Porque isso vai acontecer, Heitor, mais cedo ou mais tarde.

As evitações diárias que crio para poder te manter abaixo de sete palmos de terra, entretanto, não respeitam o sono. Eu não deveria, talvez, te dizer isso, Heitor, mas quando eu sonho com você o meu dia rui e ao mesmo tempo tua lembrança me inaugura por minuto e por completo. Paradoxo e intenso, não? Como minha vida todinha. 

Vou ficando por aqui, porque o sono já me entorpece. Imagino que esteja se perguntando se voltei  para o Rivotril que você tanto odiava, mas querido, me compreenda: por hora é necessário e contundente.


Com sono (induzido pelo Rivotril),

Helena

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