Heitor,
A memória do meu celular anda acusando-se
cheia diariamente. Todos os dias emite mensagens gritando para que eu a esvazie
de alguns megas. Ele continua lento como uma tartaruga. Preciso urgente achar
espaço nos meus dias para fazer isso. Ou seria coragem, já que grande parte
dessa ocupação se deve às nossas fotos? Eu ainda não as apaguei, Heitor. Talvez seja esse o motivo de seus intermitentes pedidos
de evacuamento: até ele sabe o que é melhor pra mim.
E por falar em memória, vira e mexe,
tantas reminiscências nossas, ousadamente, emergem... Juro que não as evoco Heitor, juro por
tudo que vivemos. Acontece que sempre acontece algo que me remete a um fato
pretérito nosso. Pretérito no sentido cronológico, apenas. A memória é um dispositivo cerebral capaz de atemporizar tudo, até o que a gente não queria. Uma música, um lugar, um cheiro. Uma porta que bate. Sim, Heitor, uma porta que bate. Ontem mesmo, lembrei do dia em que você me agradeceu por não
ter batido aquela porta. Em uma de nossas raríssimas discussões, saltei
violentamente do carro e abri a porta da minha casa. Fiquei parada ali, mais de
um minuto, sem saber o que fazer. Observava teu semblante aflito dentro do carro, através da
minha visão periférica. Braços debruçados sobre o volante,
olhar perdido no horizonte. Observava as batidas do meu coração já apaixonado
por você. Minutos antes você tinha me dito que não aceitava ser menos que meu tudo, e eu já tinha tomado uma decisão
interior de nem ser nem fazer de ninguém algo tão perigoso quanto ser o
universo de alguém.
Eu sempre tive medo de tudo, menos de me atirar de
penhascos e naquele momento, Heitor, você era um dos penhascos mais profundos
que a vida me apresentara até aquele dia, por uma gama de coisas que agora não
convém entrar no mérito. E eu tive medo, mas lá no fundo, pelo menos uma vez na vida eu também queria experenciar essa coisa de ser tudo pra alguém, como você dizia que eu já era pra você. Eu tinha em uma mão as chaves de casa e na outra as chaves de um futuro. Eu não entrava, você não arrancava o carro. Durante aqueles segundos pensei em quantos amores já tinha sido abortados em nome de receios, orgulhos, dúvidas, e voltei. Voltei, te disse dez desaforos, você me beijou, e fomos felizes enquanto nosso sempre durou.
Eu sei que aos trinta e tantos essa síndrome da cinderela já
deveria ter desaparecido, mas eu prefiro culpar meu sol e minha lua em Peixes por não conseguir me livrar da atropeladora intensidade que me acomete.
Hoje, Heitor, eu fico me perguntando o que teria
acontecido se eu tivesse batido a porta, subido as escadas, metido a cara no
meu travesseiro e chorado até amanhecer do dia. O quão melhor ou pior
teria sido. Onde e com quem eu estaria agora. Quantas lágrimas eu teria evitado
e quantas inimizades eu não teria feito. Penso no espaço mais livre que minha
caixinha de equívocos teria. Mas também penso em quantos pores do sol eu
deixaria de ter assistido com a cabeça reclinada sobre teu ombro e em quantas
noites de sono eu teria perdido com a cabeça reclinada sobre teu peito. Em
quantas viagens eu deixaria de ter feito, e em quantos lugares fantásticos eu não
teria conhecido. Eu fico me perguntando mas a verdade é que nunca saberemos como seríamos caso nunca tivéssemos sido. Mistério que ficou eternamente trancado a sete chaves num baú chamado tempo.
Mergulho então em uma das minhas premissas
interiores mais certeiras e me acalmo: nada em vão nos acontece. Enfrento os dias fundamentada em outra: essa dor também há de passar. Adormeço ninada pela paz que aquela escolha me traz: sempre será melhor arriscar do que colecionar "e se's", não importa qual seja o fim.
Com certezas confortantes,
Helena
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