segunda-feira, abril 30, 2018

A queda.



Heitor,


É ainda com dor que te escrevo exatos 23 dias após teres me lançado de uma das janelas do infinito andar do prédio da nossa vida. Sabe quando a gente é adolescente e fica tentando adivinhar na rodinha dos colegas como é que a gente vai morrer? De acidente... de câncer... de ataque do coração... de tiro... de queda de avião. A gente imagina tudo, se vai doer ou não, se na porta do céu vamos encontrar São Pedro ou São Sebastião, se vão chorar em cima do nosso caixão... mas a gente nunca, nunca, Heitor, imagina que vai morrer fruto de um empurrão. Até porque as pessoas têm vivido em alturas tão rasas que não aconteceria nada, além de um reles tropeção. 

Mas foi bem disso que morri, Heitor. E doeu tanto, tanto! Ainda dói. É dor que não tem nome, dor que lateja por ainda não saber serenar. Não é dor de queda livre, de impacto inevitável com o solo duro e pedregoso. É dor de empurrão de uma mão a qual nunca se pode imaginar. É dor de traição. A mão amante, que amava me apalpar e me puxar os cabelos; a mão amiga, que me ninava no abraço mais terno que pude experimentar; a mão  artista, que me riscou de tintas das quais nunca mais hei de me livrar; a mão agora gélida, a me empurrar da forma mais covarde daquele infinito andar.

Portanto não foi a altura infinita que me fez morrer. Se fosse, Heitor, eu já tinha morrido há muito tempo. Foi o empurrão do meu cúmplice maior: foi você. Foi a forma que você elegeu pra me jogar lá embaixo. Sem suporte de impacto algum, sem rede de proteção, sem cama elástica, sem piscina de bolinhas. Mas agora nem importa mais, porque o que doeu, tá doído; tá doendo. E o que doeu mais foi aquele toque no ombro que implodiu por imediato as minhas vigas interiores e em segundos eu me vi coberta de escombros, envolta numa nuvem de confusão, e você de fora, observando tudo de camarote com uma Heineken na mão e na outra um pseudotrófeu que tudo indica que será o próximo a quebrar. 

Você, Heitor, como um ser invisível, entra e sai sem o mínimo de empatia no jogo da vida das pessoas. Permanece intacto. Aparentemente, vencedor. Passeia pelos destroços, chuta ainda algumas pedrinhas, arrisca um sorriso amarelo e insosso, acena a mão. Coletes à prova de bala, pra quê? Nada te atinge, nem a minha dor, nem a indignação da platéia, nem a mágoa da concorrência. Ileso e de consciência de pluma, você vira as costas e some agarrado com o troféu à tiracolo: já não mora mais ali, és apenas um curioso expectador.

Mas, e aí: Eu cai! Eu cai! E morri. E foi assim, meio-morta, que eu me percebi viva; os cacos, os estilhaços, pasme: estavam recheados de memórias e sentimentos, e emoções, que, embora em transe, vinham à tona sem que eu pudesse as evocar, posto que nem forças para encará-las eu tinha. Mas elas vinham por si só porque esses troços costumam ter vida própria.

Foi então que eu lembrei do nosso ninho. Da nossa vidinha, que eu achava que era tão somente nossa. Que você me fez acreditar que era pra sempre... lembra? Da noite caindo rotineiramente e de você acelerando em direção ao nosso cantinho, dizendo: "Chegou a melhor hora do dia" - você dizia ao mesmo tempo que tirava a mão direita do volante e pousava-a em minha coxa esquerda enquanto eu, suspirava, sorrindo, litros de  felicidade. Aliás, nem eu sabia onde cabia tanta felicidade... Eu, então, entrelaçava meus dedos nos seus e, sorrindo, cerrávamos a porta do nosso canto e nos preparávamos para conferir o relógio que marcara diuturnamente aquele momento. Eu te olhava por horas, e nem sei quantas vezes agradeci a Deus por estarmos ali, juntinhos, colados, um só, mesmo sem precisar passar na igreja pra regularizar isso. Mesmo sem alianças, sem vestido branco, sem padrinhos vestidos de pinguins e festa pra os chatos reclamarem - o importante pra gente sempre foi o amor, o momento, o agora. Não era assim? Nada disso era necessário. Necessária era a química, o magnetismo, o encanto e um penne à carbonara depois do sexo. Únicos ingredientes realmente imprescindíveis ao nosso amor. O resto é lembrança boa que a esponja do tempo é incapaz de apagar. Que faz a gente encher a boca e dizer que valeu a pena. Ainda bem que dor nenhuma invalida momentos inesquecíveis. Ainda bem!


Com amor,  Helena.

Nenhum comentário: